Orfandade

Tenho medo de que meus pais morram. Naturalmente, todos os que têm pais, com quem tiveram uma relação minimante saudável, que acatam com os estímulos culturais e cultuam a família, tendem a temer a perda dos pais. Em momentos em que crio eventos prováveis na imaginação, momentos que se perdem entre escovar os dentes, trocar de roupa, arrumar a cama para dormir, já pensei o que seria se um deles morresse subitamente. O meu ano seria suspenso. Planos, viagens, trabalhos. Muita coisa teria que ter uma pausa. Talvez as atividades não pudessem esperar todo um ano de luto, mas certamente o ano em que a perda ocorresse ficaria marcado para sempre como o ano em que meus pais morreram.

2020 é um ano suspenso.

Meus pais estão bem, estão vivos, falam comigo pelo celular. Pela câmera do celular, porque não posso visitá-los. Essa é a condição para que eles continuem bem. São da faixa de risco, não posso correr o risco de levar a eles a doença.

O ano foi suspenso por causa de uma doença. O mundo inteiro suspendeu esse ano.

É como se o mundo inteiro temesse a perda dos pais, dos avós. Claro que não é só isso, a Covid-19 gera uma sobrecarga em hospitais e agora aprendemos que vivemos em uma sociedade marcada por apostas ou estatísticas que para mim são apostas são crenças. Os hospitais não são construídos para atender a todos. Nem à maioria. Nem à minoria. São construídos para atender alguns doentes. É uma aposta. A sociedade é sadia, portanto, faremos poucos leitos. E quando a sociedade periga adoecer quase totalmente, tudo é suspenso.

Por que não temos leitos suficientes para tratar nossos pais e avós caso eles se enfermem?

Ouvi de alguém que leu não sei onde – grande parte das minhas referências são assim, fruto de falta de memória e de concentração causadas pelo uso excessivo da internet–  que a base do trabalho dos engenheiros  é a fé. Eles acreditam que o edifício não vai ruir. Claro que há muitos cálculos, escolha de materiais adequados, entre outros. Mas todos esses cálculos e materiais fazem parte dessa fé. Até agora nenhum ou raros edifícios compostos dessa maneira, por esses materiais, caíram. Portanto, é muito provável que este não caia. Eles não podem afirmar que o edifício não vá cair de forma alguma. Uma vez fizeram isso, em meados do início do século XX, quando todos estavam deslumbrados pelo progresso da tecnologia. Foi quando colocaram no mar o navio que não podia afundar. Já sabem o que aconteceu.

Então estamos aqui num mundo de crenças e apostas. São duas palavras tão próximas para mim, mas que se separam vertiginosamente por causa de suas filiações. Primeiro a religião, depois o jogo, seu contraposto.  Religião não é jogo. O conjunto de crenças é incorruptível. Já o jogo está dado a perdas e ganhos.

Eu corrigiria a pessoa que falou sobre os engenheiros. Não atuam com fé, mas sob apostas. Que não existe Deus, já estou farta de aceitar. Existe vida, existe o incognoscível, mas Deus espelhado no ser humano? Logo no ser humano que ergue suas torres de edifícios para que ele mesmo as derrube com alguns aviões? Esse é um apostador nato. Irresponsável como sempre o são. Não adianta se persignar antes da aposta. Não há Deus para assistir à escolha arbitrária de dados.

Enfim, não queria escrever um texto assertivo, dando nome a gados esses animais ressignificados nas metáforas políticas nacionais. Queria só refletir sobre o medo que tenho de perder meus pais. Estou enclausurada em casa, tentando seguir alguns projetos, trabalhando para empresas que abstraem o inevitável. O mundo está suspenso porque podemos ficar órfãos. Jogados à mais dolorosa solidão. É como se estivesse andando de mãos dadas a esses pais ou avós que podem ser apenas simbólicos e que, de repente, podem ficar enfermos pelas nossas próprias mãos mal higienizadas, por nossos sorrisos que soltam gotículas contaminadas–  e sem chance de serem socorridos. Não foram construídos hospitais para todos os pais e avós e agora todos eles correm risco de desaparecer.

Deus está morto. E todos os pais e avós também?

Meus pais, na telinha do celular, sorrindo e contando piadas já parecem tão irreais. Como esse ano, esse mundo, esses hospitais.


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