Postagens

Fuga adiada

O plano que se esboçou meio que por acaso e em cima da hora era fugir. Me preparei de forma bem desajeitada para isso. Numa manhã de sábado, tive que acordar bem cedo pra fazer uma prova de inglês que me custaram vários dólares e o dólar nesse meu país está inflando há muito tempo. Naquela manhã ensolarada, quando carros de som começavam a sair na rua para começarem com os blocos de carnaval, eu corria para chegar a tempo à tal prova. Era uma prova de inglês que me autorizaria a fugir para um país anglófono. Fiz a prova, enviei documentos, recebi uma carta de recomendação de uma universidade bem importante e comecei, desde então, a sonhar todos os dias com a viagem. Sonhei com os amigos que faria, com os rapazes que conheceria, com as conferência de que participaria, com a casa em que moraria, com o metrô que pegaria. Sonhei todos os dias. Mas então aquela gripe estranha chegou no país. Isso quando estava comemorando a minha fuga no meio de milhares de pessoas amontoadas nas ruas, embr

...um dia pós outro

Imagem

Caixas

Estou há ? dias sem sair de casa. Minto, saio de casa para ir ao supermercado. É uma tarefa cansativa, pois, sempre que volto, tenho que preparar a casa para receber uma guerra. Lugar para jogar roupas supostamente infectadas, álcool em gel, água sanitária para limpar todos os produtos. E, durante o banho, primeira coisa que faço assim que chego, a certeza de que se entrei em contato com o vírus, é impossível evitar que ele se infiltre em mim. Não era isso que queria escrever. Todo mundo vai escrever sobre isso, sobre a batalha que é ir ao supermercado. A batalha que se transformou seguir no sistema capitalista - e se inventaram esse vír... Deixa pra lá. Caixas, ia escrever sobre caixas. Tanto tempo em casa e sinto a minha casa como uma caixa (eu uso "minha" aqui para me trazer conforto, ela não é minha, ela não é minha, ela não é minha) São vários cômodos, numa caixa. Mas agora a minha cabeça parece que virou um cômodo a mais. (ela não é minha, ela não é minha, ela

Orfandade

Tenho medo de que meus pais morram. Naturalmente, todos os que têm pais, com quem tiveram uma relação minimante saudável, que acatam com os estímulos culturais e cultuam a família, tendem a temer a perda dos pais. Em momentos em que crio eventos prováveis na imaginação, momentos que se perdem entre escovar os dentes, trocar de roupa, arrumar a cama para dormir, já pensei o que seria se um deles morresse subitamente. O meu ano seria suspenso. Planos, viagens, trabalhos. Muita coisa teria que ter uma pausa. Talvez as atividades não pudessem esperar todo um ano de luto, mas certamente o ano em que a perda ocorresse ficaria marcado para sempre como o ano em que meus pais morreram. 2020 é um ano suspenso. Meus pais estão bem, estão vivos, falam comigo pelo celular. Pela câmera do celular, porque não posso visitá-los. Essa é a condição para que eles continuem bem. São da faixa de risco, não posso correr o risco de levar a eles a doença. O ano foi suspenso por causa de uma doença. O mun